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terça-feira, maio 19

Cabeça-de-Cuia







O cabeça de cuia e’ o ícone identitario de Teresina.

A cidade o trata como um mito, herói, monstro de cabeceira, amigo de longas datas, com intimidade e um respeito cheio de orgulho. E la se vê o nome e a imagem do homem com uma cabeça de cuia em tudo que e’ lugar.

Em nomes de banda, de site, de projeto cultural, em etiquetas, camisetas, no mercado, no artesanato, nas artes plásticas, dança, musica. Ta la o cabeça de cuia, representado “culturalmente” como nossa cidade. Criaram pra ele ate um dia especial no calendário, dia do cabeça de cuia (não me perguntem quando e’).

A estória eu não preciso contar, os daqui já conhecem, os de fora por favor dêem um google, existem muitas versões, mas basicamente e’ a estória de um homem amaldiçoado, que vive solitário em um rio com uma cabeça de cuia, sob o efeito de uma praga rogada pela mãe.

Ando pensando faz tempo nessa coisa de associar uma identidade cultural a um mito - meio gente, meio monstro - e disso vir a fazer parte do imaginário coletivo de um povo.

Venho pensando em como os itens de caráter, personalidade e estética do cabeça de cuia, são usados para exercer em nos esse sentido de pertencimento a um lugar, a uma historia, a um destino.

Estória bem estranha essa do cabeça de cuia.

Quando o Massimo Canevacci esteve aqui a algum tempo atrás, puxei o assunto do tal monstro das águas. Falei que estava trabalhando com essa idéia para um projeto futuro, tentando submergir para algo que viesse da condição-situacao desse homem imaginário, enigmático e popular.

Ele se interessou imediatamente e começamos a conversar a respeito, associando os detalhes da estória a outros conhecimentos da filosofia, psicanálise, antropologia, ele com um conhecimento muito vasto, insistindo na coisa da relação mãe-filho, e reconhecendo a lenda como parte da cultura indígena brasileira, o que faz sentido.

Fomos ao encontro das águas, lugar que se estabeleceu como “lugar do cabeça de cuia”, e pudemos ouvir a estória contada quase que automaticamente, mas com um frescor e uma inocência admiraveis, pelo Cauã, um menino que conta a estória pros turistas em troca de algum Real ou uma coca-cola.

Massimo me disse pra convidar o menino pra vir contar a estória no palco, e divagamos horas sobre esse lugar da arte contemporânea, da inserção do real, e de como um ato performático deveria ser a principio um ato para revelar as origens desse real, embora totalmente involucrado na fantasia.

E o cabeça de cuia passou a fazer parte desse projeto de pesquisa, não nao sem um certo desconforto com a coisa institucionalizada e principalmente com a celebração cega que se faz dele, motivo de um orgulho que existe mas não se faz mostrar efetivo, potente, pelo povo daqui.

Me interessa o elemento da maldição, um ser amaldiçoado como ícone de um povo. Huuum....se diz coisa ai sobre esse povo.

Me fascina também a coisa da carapuça, essa cuia que esconde a cabeça, o torna anônimo como o bandido que esconde a cabeça com o capacete, mascara de uma condição que precisa ser evitada, mascarada. E a coisa da submersão, de precisar da lua pra emergir, com um desejo insaciado e uma solidão que foi sempre o que mais me chamou a atenção desde minha infancia, o quão sozinho deve ser esse homem.

Recentemente meu amigo Sergio Caddah, também de Teresina, fotografo inquieto e com um olhar muito incisivo sobre as coisas do lugar, passou por aqui de visita. Me ligou falando de um lugar, um porão na antiga cadeia de Teresina onde hoje funciona a central de artesanato, e onde se vendem justamente uma profusão desses itens identitarios culturais.

O porão datava da construção da cadeia, e foi o lugar escolhido (ou construído) para as sessões de tortura, muito freqüentes (e freqüentadas) na época da ditadura militar, os conhecidos Anos de Chumbo. Da ditadura militar também não vou falar, mas vale outro google de arrepiar os cabelos, pra conhecer um pouco o making off dessa parcela significativa da historia política do Brasil.

So pra acrescentar, um fato relacionado a ditadura brasileira me surpreendeu quando da minha visita ao Museu da Tortura de Amsterdam. O Pau-de-arara, elemento de tortura “adaptado” pelos brasileiros no regime e o mais usado aqui, e’ considerado um dos mais sofisticados instrumentos já utilizados em tortura, recebendo lugar de destaque no Museu. Sofisticado significa dizer um dos mais cruéis, um meio absurdo de provocar dores generalizadas, tortura psicológica, sofrimento intenso e morte lenta, um verdadeiro sucesso em termos de como exercer um poder sádico sobre o outro.

O porão estava escondido em uma das celas que hoje são lojas, no atelier do Carlos, que nos abriu gentilmente o alçapão que da para um pequeno espaço subterrâneo: Uma sala vazia, deserta de qualquer intenção que não lembre violência e ilegitimidade, uma sala sufocada, com alguns fios elétricos, ganchos, marcas de sangue na parede e no chão, um cheiro amorfo, talvez um cheiro de restos de corpos, dor e humilhação.

Combinamos um ensaio fotográfico e contei para o Caddah minhas idéias com relação ao cabeça de cuia, tentando encontrar e já encontrando um link entre essas condições que parecem desconexas mas não são. Sobretudo agora, que se vê emergindo na cidade uma ditadura tão militar e torturante como nos tempos áureos do Presidente Medici, so que dessa vez cultural, dissimulada em ações artísticas populares, com ares de gestão publica consciente, engajada, simples e brejeira como somos nos.

Desci ao calabouço como se fosse a ultima vez impressionado de saber que para muitas foi uma ultima vez, acompanhado pela Tâmara Cubas, artista sensível do corpo e da imagem.

A cuia virou um saco enterrado na cabeça, tirou minha visão e intensificou a sensaco de medo e morte do lugar. Tâmara virou a mãe no canto, atormentada com a própria maldição, amaldiçoada duas vezes, ela também transformada em cabeça de cuia, mãe inconsolada do rebento, útero que pariu um mal que parece ser eterno, e que se alastra pelo tempo da memória do real.











2 comentários:

Sérgio Caddah disse...

porrraaaaaada nos q não fazem nada!!!! :)))

EG disse...

Olá Marcelo,
lindo seu trabalho. Estou adicionando vc ao meu espaço (de cunho literário). Moro no Rio de Janeiro há 20 anos, mas sou Amapaense e também busco trazer pro meu trabalho esses "pertencimentos" (se tiver interesse, dá uma olhada num texto chamado "Matinta Pereira" ou noutro chamado "Estrondo", que publiquei dia desses).

Também gostaria de aproveitar pra te fazer um convite. Faço parte de um grupo de cinema e atualmente estamos rodando um doc sobre um fotógrafo de setenta e três anos (J.M.Goes), de Sergipe, morador também aqui do Rio. Há vinte anos só fotografa nu feminino (P&B analógico de cunho estritamente artístico). Fiquei sabendo do seu trabalho através dele, que é teu admirador e vive citando suas frases relacionadas ao nu.

Queríamos conversar com vc, inclusive porque de certa forma vc já é personagem do nosso filme, via citações do Goes. Caso tenha interesse em conversar, nosso email de contato para o projeto é:

producao.goes@pictoramafilmes.com.br

Ah! Meu nome é Elke Gibson (sou da produção do Doc).

Um abraço e mais uma vez, parabéns pelo trabalho!!

EG